O Lugar do Jardineiro

O Lugar do Jardineiro

Nossa vida é relativamente simples, sabe?, a vida das flores. Despertar com o sol, crescer, ficar mais forte e sadia, florescer cada vez mais, mostrar nossas cores fortes, radiantes… Mas o “relativamente” tem causa: há alguém que faz nossas pétalas se abrirem, o raio do sol penetrar mais fundo, nosso perfume exalar mais forte; o Jardineiro.

Jardineiro que é bom, no entanto, toda flor merece. É por isso que ele viaja de jardim em jardim, para dedicar a cada flor sob seus cuidados o afeto e a atenção que ela merece – e todas merecem por igual, aos seus olhos. Há quem diga que conversamos com ele. É verdade, sabe? Ele nos ouve. Sem que precisemos dizer uma só palavra, ele nos escuta, compreende. Algo como se ouvisse com o coração.

Acordamos, então, com os primeiros raios vindos do céu. As horas passam como séculos, nossas pétalas poupam energia para cronometrar todo florescer, todo liberar de nossa fragrância, para que nada disso aconteça sem que estejamos sob os olhos amorosos do Jardineiro. Ele viaja de jardim em jardim, então sabemos, embora nunca ao certo, que em breve ele aparecerá novamente. Enquanto isso, sobrevivemos.

Eis que ele chega, nosso Jardineiro. Nossas pétalas se abrem, nosso perfume o envolve e nossas palavras silenciosas são ouvidas novamente. Ah, que saudade… O dia passa, nossos espinhos são cuidados, nossa terra é preparada e ficamos ainda mais bonitas. Quem sabe bonitas o suficiente para merecermos que ele não se vá dessa vez… Mas esse dia nunca chegou, o dia em que conquistássemos tal perfeição que ele não se quisesse ir. Há sempre outras flores precisando dele. Não importa o quanto floresçamos e o orgulhemos, nunca seremos motivo suficiente para que ele fique.

Andei pensando, cá com minhas pétalas, e cheguei à seguinte conclusão: acredito que as flores nem sempre tiveram espinhos, assim como nem sempre houve Jardineiro. Penso que, a cada vez que o Jardineiro veio e se foi, uma ferida se abriu e se curou. Flores também ficam calejadas, ou você achava que não?

Quem sabe por isso o jardim seja assim? Uma beleza esforçada, quase exaurida, no esforço – sempre em vão – de sermos o melhor jardim, o mais belo jardim, para merecermos o Jardineiro. E a cada partida dele, a tristeza aumenta, mas a beleza fica. Quem sabe por isso o jardim seja assim? Tão belo, mas tão triste…

O problema é que, ao contrário do pastor – que entende que seu lugar é entre seu rebanho -, o Jardineiro passa boa parte do tempo longe, sempre no caminho para um novo jardim, um outro jardim, nunca para mim. O problema, na verdade, é que ele ainda não entendeu que o lugar do Jardineiro é entre as flores.

Kama

Não acredito que estou aqui. De todos os lugares em que já fui parar na vida, este definitivamente é o mais improvável. Não quero sair daqui nunca mais na minha vida, quero me alimentar de ar, luz, cobertor… E nunca mais sair desta cama.

Deitado ao meu lado, sinto sua respiração na minha nuca. Sua mão direita repousa suavemente em minha cintura, me fazendo sentir segura, protegida, entregue. Não que isso seja ruim, mas não é necessariamente bom. Entregue, estou aberta, vulnerável, como uma presa esperando pacientemente pelo bote.

O telefone toca, é um cliente. Ele precisa atender. Sua mão se afasta do meu corpo, que lamenta a cada milímetro que a distância aumenta. Sei que é questão de segundos mas, para mim, são séculos. Pronto, voltou.
Ele encosta em meu corpo e faíscas saem de mim. É tão explícito que coro. Impossível esconder o quanto eu sou dele. Boba, me deixei cair em seu jogo de sedução. Jogo que nem ele percebeu que estava jogando.

Há poucas pessoas no mundo que nos fazem sentir como bombas atômicas prontas para explodir a qualquer momento. Como se todas as nossas terminações nervosas estivessem simplesmente aguardando o toque dessa pessoa, dessa única e rara pessoa, para nos liberar o prazer mais puro e profundo que existe.
Olhou nos meus olhos. Não sei o que é essa relação louca que temos, mas pouco importa. Deitado à minha frente, me puxou para perto. Emoldurou meu rosto com suas mãos e me beijou com tanto desejo que me senti febril. Precisei respirar. Empurrei-o para longe, com as mãos abertas em seu peito nu. Cada toque me fazia mais apaixonada por isso tudo. Suspirei.

Meus dedos deslizavam livremente pelos fios dourados de seu cabelo. Desciam pelo seu corpo, tocando cada sarda, cada tatuagem, cada pêlo. Ele era um tesouro, uma preciosidade que o mundo estava dividindo comigo, por enquanto.

Chegou a hora de ir para casa. Não me questione, faço o que faço por motivos muito nobres. Sou uma junkie por sentimentos. Acho que viemos ao mundo para isso: para sentirmos, vivermos intensamente, para sofrermos e rirmos intensamente. Da mesma forma que quero ser possuída por ele intensamente. De novo.

Quem ousa criticar os sentimentais, ou intensos? Do que seria a vida senão de emoções e sorrisos? As lembranças mais fortes não são aquelas que nos fizeram sorrir, ou chorar? Não são dessas lembranças que queremos mais, ou esquecer? É por isso que eu faço de todo momento uma lembrança em potencial. E dessa relação, faço um Soneto de Fidelidade*: “que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”.

** Kama significa “gozo dos sentidos” ou, simplesmente, “desejo”. Leia mais sobre isso aqui e aqui.

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